top of page

Solidariedades Faveladas: reconhecendo lutas e dignidades compartilhadas

Por Ana Paula Barreto


Em uma tarde quente de 2016, eu estou sentada em uma pequena sala ouvindo uma mãe explicando como havia perdido o filho. "Uma noite, enquanto toda a família dormia, um grupo de policiais invadiu minha casa. Arrombaram a porta e usaram gás, acordando todo mundo; eles entraram no quarto onde meu filho estava dormindo. Eles atiraram nele e depois levaram meu outro filho." Enquanto ela chora contando a história, um carro cheio de policiais estaciona em frente à casa. "Eles vêm aqui com frequência; eles tentam nos assustar para não contarmos às pessoas o que aconteceu. Eles não sabem que não temos mais medo. Já perdemos tudo... inclusive o medo."

Ana Paula Barreto é bolsista das Nações Unidas e especialista nas intersecções de raça, gênero, justiça reprodutiva e relações internacionais - Divulgação

Uma sensação estranha me atinge, eu conheço essa história! É quase como se eu não precisasse mais da interpretação em árabe. Eu olho em volta, vejo fotos dos filhos dela. Olho pela janela, as crianças brincam, jovens conversam, olho as casas, o bairro… eu conheço essa história! Fecho os olhos e estou de volta ao Jardim Angela, em São Paulo, onde cresci. Vejo rostos, crianças, pessoas, casas semelhantes e a mesma violência.


Assim como na Palestina, as favelas brasileiras são "territórios de exceção". Espaços altamente policiados onde existe uma relação tênue entre o interior e o exterior. Em ambos os territórios, as violações de direitos humanos são legitimadas pelo poder da sociedade "de fora". Nas favelas, tal como na Palestina, o estado de exceção é normalizado e as pessoas que vivem dentro das suas fronteiras são vistas como culpadas da sua própria realidade, criminosas, matáveis – menos que humanos.


Desde então, tenho trabalhado para fortalecer a solidariedade transnacional entre pessoas que vivem em situações semelhantes ao redor do mundo. O trabalho envolve estabelecer ligações para compreender contextos locais, línguas, práticas culturais, valores e, o mais importante, as relações de poder, para alcançarmos justiça e direitos humanos. Na minha experiência, a solidariedade que vai além das fronteiras e prioridades nacionais é a chave para enfrentar as estratégias dos movimentos anti-direitos e o crescente autoritarismo global que viola os direitos humanos fundamentais, separando as pessoas em "matáveis" e "não- matáveis", descartáveis e não descartáveis, humanos e não humanos, ou seja, criando "o outro".


Uma oportunidade atual para um movimento de solidariedade global seria o "Genocídio Estatístico" denunciado pelos movimentos negros colombianos. Entre 2005 e 2018, 30,8% dos afro colombianos "desapareceram" das estatísticas oficiais, número que passou de 4.311.757 milhões em 2005 para 2.982.224 milhões em 2018. Isto se deve a uma série de erros cometidos pelo Departamento Administrativo Nacional de Estatísticas, incluindo variáveis limitadas relacionadas com a auto-declaração, a falha dos entrevistadores de realizar perguntas relacionadas a origens étnicas e raciais em comunidades historicamente negras e a formulação de perguntas de forma não facilmente entendível pelas comunidades.


Nas palavras de Andreiza Anaya Espinoza, professora afro-colombiana de ciência política, "Estatísticas criam realidades, imaginários e práticas cotidianas, neste caso, cria-se um imaginário que perpetua o argumento do ‘ser menos afro’ que deslegitima as lutas históricas dos líderes afro-colombianos e aprofunda práticas de racismo e exclusão". 3/3 Em ambos os contextos, Colômbia e Palestina, os movimentos negros brasileiros poderiam desempenhar um papel crítico, pois temos ampla experiência na elaboração de censos, dados e estatísticas nacionais para promover a justiça racial e influenciar políticas públicas, bem como defender e conscientizar globalmente sobre o estado de exceção nas favelas, já que a polícia brasileira é a polícia que mais mata no mundo, promovendo o genocídio da população negra no país.


A criação de espaços de solidariedade transnacional baseados em confiança mútua, onde as pessoas e os movimentos possam aprender, partilhar estratégias, recursos políticos e, o mais importante, construir poder coletivo, que é urgente para a nossa liberdade e dignidade compartilhadas. Os espaços de solidariedade transnacional podem ser um caminho para mudanças estruturais baseadas nos nossos conhecimentos, perspectivas, escrevivências, valores e histórias ancestrais coletivas. Eu sonho com o dia em que caminharei pelas ruas do Jardim Angela e Ramallah e verei novamente muitas semelhanças – a alegria, a paz e a dignidade nos rostos dos nossos povos.


* O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Ana Paula Barreto foi "Amanecé", interpretada por Herencia de Timbiqui.

 

This article was first published on Folha de São Paulo on November 24, 2023.

Comments


bottom of page